O futuro das escolas no mundo digital (I)
Desde o surgimento dos sistemas educativos nacionais no final do século XVIII, a escola foi pensada como a criadora de um novo futuro, e dos cidadãos letrados e integrados à vida republicana que poderiam desfrutar de uma mobilidade social ascendente. Mas essa relação entre futuro e escola aparece fissurada na situação atual de “crises do governo” e imprevisibilidade, com uma ameaça de caos cada vez mais presente. Segue sendo a escola a garantia de formação cidadã, empregabilidade, mobilidade social, divisão de identidades sociais e a abertura a novos horizontes?
Há sinais que apontam para pensar que esta utopia não está morta. É um espectro que recorre em muitas sociedades como esperança e como salvação ante as inusitadas formas que toma a vida social. Braudel dizia que as mentalidades demoram a mudar. Que, ainda existindo mudanças na estrutura material, o mundo teria persistências notáveis. Isso é o que faz que nos surpreendamos perante a continuidade do imaginário educacional ascendem tem forjado em outro contexto, mas que segue modelando ações de diversos atores. A surpresa aumenta se consideramos que desde décadas atrás vimos escutando que a educação está em crise.
Neste imaginário estendido amplamente na sociedade e relativamente consolidado, se está opondo-se um discurso de caráter apocalíptico, sustentado na “solução tecnológica”.
Partindo dos problemas e de certas perspectivas que vêm às escolas como organizações articuladas, rígidas e pouco flexíveis para adaptar-se às demandas da modernidade líquida, se propõem sugestões, inclusive revoluções, de ordem tecnológica que privam da história, dos atores, das relações de forças e as tradições culturais. Contra o tédio, a “gramatização”. Contra o sedentarismo, a deslocação. Contra a estrutura escolar, a aprendizagem espontânea.
Acreditamos que há de pôr em questão estas opiniões para poder esboçar outros cenários de futuro para a escola. Por exemplo, cabe planificar-se: em uma sociedade de hiper-aceleração, como centralizar a aprendizagem em esforços mantidos al longo do tempo e no diferimento do “entretenimento” e imediatismo? Em uma “sociedade do espetáculo”, que futuro cabe a uma instituição organizada em torno a rotinas e exercícios que requerem repetições, com ritmos lentos e espaços estruturados? Em um contexto que postula a primazia da inovação, a resposta imediata e a originalidade, que valor se lhes outorgará à reflexão nuançada, à transmissão da experiencia, à introdução sistemática a estruturas de pensamentos já conformados, mas indispensáveis para criar novidades? Em um mundo no qual o presente se constitui em comandante do tempo, no que manda no acontecimento, o aleatório e o instável, quais são as possibilidades de transmissão intergeracional? Em um mundo no qual se cresce a “individualização da referência” (como a chama Marc Augé) pondo em questão as referências comuns, como valorizar seletivamente critérios, elementos e formas da cultura herdada?
As perguntas são muitas e requerem pensar em outras pedagogias e em outros conteúdos. Também se cria a dúvida sobre se a escola poderá sobreviver a este contexto de novas demandas e pressões. É uma instituição de modernidade condenada a desaparecer ou definhar, ou a veremos transformar-se?
Há distintas analistas que se propõe a responder estas perguntas. Um exemplo é o panorama prospectivo que ofereceu a OCDE em 20041, que levantou três possíveis cenários para os sistemas educativos no futuro: a manutenção do Status-quo, o fortalecimento da instituição escolar e o desaparecimento da escola. O primeiro seria aquele em que tudo segue como está, com instituições crescentes burocráticas e com crises recorrentes. O segundo é o de uma transformação escolar para que a escola recupere a relevância, seja através de afirmar-se no seu papel social de transformação de formação das condutas e valores, ou localizando novamente seu lugar como centro de aprendizagem, com mais peso institucional, mais recursos neste plano de formação. O terceiro é o do desaparecimento dos sistemas escolares, pela extensão da sociedade de redes, ou por uma sorte de implosão dos sistemas diante a dificuldade de recrutar novos docentes (um problema cada vez mais agudo em alguns países do norte).
Outra perspectiva foi sugerida há muito tempo por Attali em seu artigo “A escola do dia depois de amanhã”, quando disse que os cenários serão combinados no futuro: haverá escolas que desaparecerão agarradas à sua lógica tradicional, hierárquica e burocrática, e outras se tornarão “escolas inteligentes” “Fortemente entrelaçada com a tecnologia, o que lhes permitirá complementar e diversificar tarefas e ações em torno da aprendizagem.
Na maior parte destas análises se fala mais de uma mutação da forma escolar que do desaparecimento da instituição como tal. Se propõe uma mudança da forma escolar para sustentar certas funções de transmissão cultural (códigos que poderiam chamar-se civilizatórios) e de socialização (aprender e viver juntos), junto com incorporar a lógica de aprender a aprender (inclusive a de aprender a programar). A mudança da forma escolar planeja uma ideia de transição, de um passo e uma mudança regulada. Uma transformação acordada, uma mudança real, menos traumática. Podem se relembrar a respeito da noção de “desenvolvimento próximo” de Vygotski e a perspectiva de Braudel dos tempos das mudanças sociais: estes são mais lentos e menos radicalizados do que se proclama.
No espaço atual já podemos deslumbrar escolas que hão empreendido este caminho de mudar a forma escolar e são nomeadas na literatura como “inovadores”, “enriquecidas”, “emergentes”, “estendidas”, “aumentadas”, “criativas”.
De todos os modos, diante da opção de desaparecimento da escola, cabe perguntar-se: há alguma outra instituição social que possa ocupar o lugar que hoje cumpre a escola? Pela produção cultural de referências comuns, há de reconhecer que a escola compete com outros agentes como as redes sociais e o que resta da televisão, que promovem saberes, linguagens e sensibilidades não somente às novas gerações como também os adultos. Mas esse encontro está designado pelo o que cada um pode ou sabe encontrar, e se abrem brechas importantes entre os setores sociais, os perfis de consumo e as gerações.
Isto fala quer dizer que fortalecer a escola pode ser a opção não somente mais desejada, como também a que tem mais possibilidades de abrir-se.
Que a escola desapareça significa que a sociedade renuncia a esta instituição mais que sistemática e mais pausada à hierarquia cultural e a diálogos mais amplos com a experiência humana, ao menos até agora, no que não se há inventado ainda instiuições que possam cobrir suas funções da mesma maneira.
A escola pode oferecer um contexto onde pode-se descansar em outros, numa herança acumulada, num saber que outros oferecem, num encontro com outros e com o diverso, num espaço onde um pode equivocar-se e voltar a provar sem maiores consequências, mais íntimo que as redes a seu caráter público e nomeado como um espaço de aprendizagem e não de performance no mundo adulto, mundo cada vez mais competitivo e imprevisível. Tudo isso é um dom de dar às novas gerações que não havia de jogar fora.
Que a escola possa ser um espaço e um tempo dessas características, não quer dizer que efetivamente não seja sempre em todos os casos. Necessitamos escolas que incorporem a novidade tecnológica, tenham cada vez mais telas e janelas. Que sejam mais dialógicas e abertas ao mundo, mas conscientes da necessidade de defender sua especificidade na transmissão e recreação da cultura e conhecimento. Mas estamos convencidos que necessitamos escolas.
Se o horizonte é a desconstitucionalização, a desescolarização e o fim do espaço público escolar, as sociedades humanas perderão um de suas invenções mais maravilhosas e algo muito valioso para sua própria preservação e futuro. A resposta à situação atual do sistema escolar não passa de relocalizar as escolas existentes por plataformas online que ofereçam conteúdos à medida do gosto de cada consumidor, para potencializar o espaço escolar com uso mais complexos e mais enriquecedores das novas tecnologias, e com uma aposta mais profunda para recriar o encontro entre gerações na transmissão e renovação da herança cultural.