A alfabetização: Método fônico ou global?

29 outubro 2019
Crédito imagem: Vanessa Nicolav.

Por Catherine L’Ecuyer

O debate pedagógico em torno da alfabetização não é novo. Já em 1963, Montessori discordava abertamente da abordagem global de alfabetização usada por Ovide Decroly (Maria Montessori, 1963, citada em Grazzini, 2004), comparando-a com os hieróglifos do Antigo Egito. Embora seja verdade que Montessori inverte a ordem tradicional da alfabetização (a criança montessoriana começa escrevendo letras e palavras e somente depois começa a ler) e que sua abordagem é principalmente sensorial (a criança montessoriana aprende primeiro a reconhecer as letras por associação do toque com o som), ela era uma defensora fervorosa do método fônico. Hoje, os ventos da inovação tendem a associar o método fônico à antiga escola behaviorista e mecanicista e, portanto, a vê-lo com maus olhos. Mas é essencial discernir entre a rejeição de uma filosofia mecanicista e os benefícios comprovados de uma metodologia pedagógica concreta. Como dizia Sócrates, “existe apenas uma maneira de começar para quem pretende não falhar em suas tarefas: saber do que se trata a tarefa; caso contrário, certamente falharemos.”

O que são, então, os métodos fonético e global? O método fônico consiste em orientar a criança na consciência fonológica, que é a pronúncia e o reconhecimento dos sons das letras, e guiá-la na formação das letras que resultam do conjunto desses sons. A criança passa da rota fonológica à rota léxica quando reconhece com agilidade e rapidez que um conjunto de letras corresponde a uma determinada palavra. À medida que a criança consegue automatizar o processo de reconhecimento dos sons e passa à rota léxica com agilidade — por meio da repetição —, ela torna-se capaz de dedicar sua atenção ao significado das palavras que está lendo e, por fim, de compreender um texto.

O método global, por outro lado, consiste em começar diretamente pelo reconhecimento das palavras, uma a uma, a partir do contexto; ajuda-se a criança a dar às palavras um sentido que é seu, tanto ao ler quanto ao escrever. Devemos saber que as evidências(Cologon, Cupples e Wyver, 2011; Ehri, Nunes, Stahl e Willows, 2001; Liberman e Liberman, 1991; Rayner, Foorman, Perfetti, Pesetsky e Seidenberg, 2001) apoiam o método fônico, não o global, como rota privilegiada para a alfabetização de crianças sem patologias, mas, sobretudo, para crianças com dificuldades de alfabetização, principalmente a dislexia. A condição neurológica das crianças disléxicas lhes dificulta a passagem da rota fonológica à rota léxica. Eliminar a rota fonológica para esses alunos os priva de recursos que podem servir-lhes como estratégias para a aprendizagem.

Até mesmo os países onde a fonética da língua é opaca (por exemplo, o inglês) recomendam a abordagem fonética. No ano 2000, o National Reading Panel(Adams et al., 2000) dos Estados Unidos recomendou o ensino fonético para a alfabetização. O governo australiano (Australian Government: Department of Education Science and Training, 2005), em 2005, e o governo da Inglaterra, com o Rose Report,em 2006 (Rose, 2006), recomendavam o mesmo. Os três relatórios descartam os benefícios do enfoque global como principal método de alfabetização e insistem que as crianças que sofrem de dislexia precisam da abordagem fonética.

No entanto, apesar das evidências, muitos seguem com preconceitos quanto ao método fônico. Esses preconceitos talvez possam ser parcialmente explicados pelo aspecto repetitivo, e até certo ponto mecânico, da iniciação no reconhecimento das letras. Somente a automação do processo de reconhecimento dos sons permite que você passe da rota fonológica à rota léxica com agilidade, para que a criança possa, por fim, dedicar sua atenção ao significado das palavras que ela está lendo e compreender o texto. Quando a criança entende o que lê, ela dá um passo qualitativo essencial para sua aprendizagem em geral; ela passa de “aprender a ler” a “aprender lendo”, o que impacta sua aprendizagem das demais disciplinas escolares. 

Certamente, a aprendizagem deve ser significativa. Mas como Pitágoras poderia ter encontrado beleza na matemática sem ter aprendido a tabuada de multiplicação de cor pelo método da repetição? Na educação, o sentido remete ao propósito do ser humano, não à eliminação do aprendizado ou da repetição. Além disso, Montessori dizia que: “A repetição é o segredo da perfeição” (Montessori, 1948). Para a criança, a repetição é uma atividade de autoaperfeiçoamento, porque ela não está tão interessada em construir e executar tarefas externas, como os adultos, mas em construir-se a si mesma, tornando sua a realidade que conhece. Por esse motivo, encontramos crianças que são capazes de repetir dezenas de vezes atividades que parecem inúteis para a maioria dos adultos, como transferir água de um balde para outro, subir e descer escadas ou tirar e calçar sapatos. Por outro lado, elas nunca têm pressa de fazer coisas quando lhes dizemos que é preciso realizar algo externo a elas. Para a criança, o objetivo não é acumular os livros lidos ou inventar letras e palavras lendo, mas aperfeiçoar-se reconhecendo as letras e, posteriormente, compreendendo o fio narrativo daquilo que ela está lendo para torná-lo seu. Na verdade, a obra-prima da educação da criança é a própria criança.

Temos que saber, então, que rejeitar uma filosofia educacional (como o mecanicismo e o behaviorismo, que concebem a criança como um recipiente passivo — e nunca como uma obra-prima) não é necessariamente o mesmo que rejeitar um método usado durante séculos (quer o chamemos de tradicional ou não) e sustentado por evidências. Confundir o que é bom com o que é novo não resiste à prova do tempo, porque tudo que é novo um dia deixa de sê-lo. Antes de jogarmos tudo fora, é preciso fazer uma reflexão profunda e serena e questionar se o que queremos jogar fora pode ser algo de valor. Caso contrário, o barco poderia ficar mais leve e mais fácil de navegar, mas para que serve um barco leve sem velas? Esse pequeno exercício de discernimento nos lembra que não se trata de ser contra uma metodologia ou outra, de nunca ser contra nenhuma nem de “achar” que um método é melhor que outro (não é em vão que o método científico conta com “grupos de controle”). É uma questão de ter uma opinião que leve em conta as evidências; no final, todos temos o direito de ter uma opinião, mas que não esteja embasada em nossos próprios fatos. Mas, como dizia Sócrates, “certamente falharemos”.

Bibliografia

  • Adams, M., Bouchard, E., Cooper, H., Duffy, G., Eidlitz, M., Foorman, B., … Yaghoubzadeh, Z. (2000). Teaching children to read: An evidence-based assessment of the scientific research literature on reading and its implication for reading instruction.
  • Australian Government: Department of Education Science and Training. (2005). Teaching reading. Report and recommendations: National inquiry into the teaching of literacy. Comunidade da Austrália.
  • Cologon, K., Cupples, L., e Wyver, S. (2011). Effects of targeted reading instruction on phonological awareness and phonic decoding in children with Down syndrome. American Journal on Intellectual and Developmental Disabilities. https://doi.org/10.1352/1944-7558-116.2.111
  • Ehri, L. C., Nunes, S. R., Stahl, S. A., e Willows, D. M. (2001). Systematic Phonics Instruction Helps Students Learn to Read: Evidence from the National Reading Panel’s Meta-Analysis. Review of Educational Research. https://doi.org/10.3102/00346543071003393
  • Grazzini, C. (2004). The four planes of development. The NAMTA Journal29(1), 27‑61.
  • Liberman, I. Y., e Liberman, A. M. (1991). Whole Language vs. Code Emphasis: Underlying Assumptions and Their Implications for Reading Instruction*.
  • Montessori, M. (1948). The discovery of the child (Trad. Mary Johnstone). Adyar: Mandras.
  • Montessori, M. (1963). L’uomo dai duo linguaggi. Vita dell’infanzia12(5).
  • Rayner, K., Foorman, B. R., Perfetti, C. A., Pesetsky, D., e Seidenberg, M. S. (2001). How Psychological Science Informs the Teaching of Reading. Psychological Science in the Public Interest. https://doi.org/10.1111/1529-1006.00004
  • Rose, J. (2006). Independent review of the teaching of early reading.