André Gravatá é poeta, jornalista e um dos idealizadores da Virada Educação.

“Compreende-se, portanto, talvez isto: Poesia = prática da sutileza em um mundo bárbaro. Daí, a necessidade, hoje, de se lutar pela Poesia: a Poesia deveria fazer parte dos ‘Direitos Humanos’, ela não é ‘decadente’, ela é subversiva: subversiva e vital”, Roland Barthes.

Essas palavras do escritor Roland Barthes são incendiárias, nos convidam a perceber a vitalidade da poesia. De uma poesia que deveria fazer parte dos direitos de todas e todos que agora, espalhados nesta imensidão do tempo e do espaço, têm uma sina compartilhada, uma relíquia de instante: o desafio de conviver.

Na escola, quando me aproximei da palavra poesia, não me identifiquei com aquilo à minha frente. Apresentaram para mim um emaranhado de sentidos sem relevo, sem perplexidade. E assim a maioria de nós descobre a poesia: como algo que não nos atravessa, não nos diz respeito, não nos nutre.

Um pedido: quebremos esse medíocre significado de poesia bem como se lançássemos um prato no chão, num precipício, com indignação.

Foi a escritora Clarice Lispector que me alertou: nosso primeiro encontro com a poesia é geralmente um desastre. Entregam para os novatos no mundo uma poesia pisada, contida, domesticada. É que desde cedo somos caçados para a normalidade, ensinam-nos pouco a pouco (e por vezes muito a muito) o embrutecimento.

Caçam-nos a cada dia para que nos tornemos iguais aos “normais” que nos rodeiam, para que o cansaço seja a companhia no fim do dia, para que nos dobremos exaustos no fim dos anos, para que não mais nos lembremos a força das sutilezas no corpo, para nunca chamarmos de poesia qualquer coisa que escape da significação mais miserável que a nós apresentaram. E a Clarice não para aí na sua revelação do que nos acontece, ela lança um coquetel molotov na porta da nossa casa ao dizer que, não apenas somos caçados para uma falsa normalidade, mas nos enganam tanto (e nos enganamos tanto) que chega uma hora em que acreditar na possibilidade de ver o mundo de outra maneira se torna quase impossível. (Leia a Clarice dizendo tudo isso e ainda mais no conto A Mensagem, presente no livro Felicidade Clandestina– é um banho de lucidez.)

Aproximar-se da poesia na sua forma mais fértil é encontrar a educação em estado vigoroso: tanto educação quanto poesia têm a ver com perceber nossa coleção de enganos, aprender a ler o mundo e a lapidar nossa sensibilidade.

A poesia é uma chance de não entupirmos a circulação de afeto em nós, é abertura para o inesperado, para o que está perto e, por ser tão banal e cotidiano, nem mais nos damos conta – ocupar a educação com poesia tem tudo a ver com transbordar os muros das escolas em cortejos, em derivas, em caminhadas de olhos acordados, em projetos que nascem de uma firme e calorosa escuta de todas e todos que habitam os territórios.

Poesia é espanto com a realidade e o espanto acontece no corpo inteiro – se perdemos nossa capacidade de nos surpreender, é como habitar um corpo sem pulmão, sem sangue, sem presente. Poesia é intimidade com diferentes perspectivas, mistura de ritmos, caleidoscópio, é Racionais MCs, Stela do Patrocínio, Alice Ruiz, Rincon Sapiência, Bertold Brecht, Manoel de Barros, Sérgio Vaz, Hilda Hilst, Wislawa Szymborska. Poesia é Conceição Evaristo:

“Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas”.

Poesia é perceber que ler o mundo é um assombro em tsunami, é tecnologia de subversão da normalidade. A palavra que circula nos jornais e em tantas conversas mortas é aquela palavra acostumada – inúmeros comentários de textos na internet, por exemplo, são agregados de palavras que mais se parecem cadáveres, de tanto que repetem lugares-comuns. A tragédia: palavra acostumada não comove, não abre caminhos. Já na poesia, a palavra se expõe em carne viva. E deixar a expressão acostumada para se relacionar com uma matéria em carne viva é um ato educativo, político e poético ao mesmo tempo.

Um sonho: que essa poesia fértil seja percebida como essencial na agenda dos dias. A poesia não vai resolver os problemas do mundo, mas pode aumentar nosso fôlego, nos nutrir com o sabor do âmago das coisas, possibilitar outras maneiras de tecer relações com o que existe. Despeço-me, por enquanto, com um poema que escrevi no ano passado, sobre quando a poesia me encontrou, em que digo o seguinte:

a poesia me achou
não para me apegar ao poema
mas para eu não desprezar a realidade.